sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Os textos e as entrelinhas ...

Há uns anos ao ler um livro de Alice Vieira, escutei uma voz de menina que comentava estupefacta: o grande cuidado que se tem com as coisas e o pouco cuidado que se tem com as pessoas! ( A Alice é fabulosa , nesta coisa de falar nas entrelinhas)

Veio-me esta frase à lembrança, a propósito de uma carta que recebi no dia 30, de um colega ( dirigente e meu superior hierárquico ) que terminando a sua relação laboral com a organização que sirvo, regressa agora, envolto em silêncio, à sua escola de origem. Durante alguns anos trabalhamos juntos, disputando recursos, partilhando projectos, divergindo em pontos de vista,convergindo noutros. Tivemos pouco tempo para celebrar sucessos.( O SUCESSO em cultura é sempre algo que demora muito tempo a celebrar)... terminava a sua carta dizendo:
" Com a consciência do dever cumprido, termino com uma frase do “nosso” Bento de Jesus Caraça, escrita em 1933 : “A aquisição da Cultura significa uma elevação constante do Homem; significa, numa palavra, a conquista da Liberdade”... surpreendeu-me e tiro-lhe o chapéu pela coragem, pela elevação e dignidade como geriu todo este processo, no mínimo nebuloso.
Não discuto, a legitimidade democrática de quem decide, mas impõe-se - não ficaria bem com a minha consciência se não o dissesse - tratar as pessoas com dignidade, pois considero que a dignidade é um bem precioso.Talvez a última fronteira entre o Homem e as Bestas.

No momento em que se fecha um capítulo desta dimensão, na vida de alguém, uma frase nunca é escrita por acaso e senti-me desafiada a buscar o texto integral da conferência de Bento de Jesus Caraça "A Cultura Integral do Indivíduo - Problema central do nosso tempo" , realizada na União Cultural «Mocidade Livre» em 25 de Maio de 1933), a ler as reflexões expressas na conferência mas, sobretudo, a ler nas entrelinhas, muitas outras coisas.

Umas quantas frases ficaram a latejar-me na cabeça ( como pedras lançadas a um charco, gerando ondas... ondas) partilho-as agora de forma um pouco avulsa .
cit.BCJ:
E aqui reside o grande drama em que, de todos os tempos, se tem debatido a humanidade -condenada a só poder evolucionar e progredir sob a acção vivificadora e fecunda de alguns dos seus indivíduos, ela vê-se ao mesmo tempo impotente para impedir que esses indivíduos se transformem em seus verdugos. Ela assiste, incapaz de o evitar, à criação das castas que são como outras tantas sanguessugas sobre o seu corpo, sem, ao menos, lhe restar a solução de as eliminar, porque isso equivaleria à sua morte no pântano estéril da incapacidade.
(...)
aquelas elites propulsionadoras, em cada período histórico, do desenvolvimento científico, literário, artístico, foram realmente aquelas que, nesse período, ditaram a forma de constituição da sociedade, a orientaram, regulam o seu funcionamento orgânico?Por outras palavras, elite científica e cultural e classe dirigente,são a mesma coisa? Ou, melhor ainda, a primeira está compreendida na segunda? Uma consulta à história fornece resposta imediata pela negativa.
É abrir esse grande livro e prestar ouvidos aos queixumes e protestos com que aqueles homens verdadeiramente de elite, aqueles que, alguns séculos mais tarde, dão o tom ao mundo da alma e do pensamento, respondem às perseguições que os seus contemporâneos das classes dirigentes lhes movem
.
Incompreensão completa duma forma nova de pensar, temor de que um ataque à rotina abale os alicerces de um poderio egoísta, de natureza espiritual ou material, vários são os elementos que se conjugam para fazer desses homens um grupo à margem, que só à força de heroísmo conseguem conservar aceso, e transmitir às gerações seguintes, o facho da cultura.Passam-se ao menos as coisas de maneira diferente no século em que vivemos?
Devemos confessar, em homenagem àquilo que temos como a verdade, que, apesar de as condições actuais de vida, constituírem dentro de certos limites, um meio mais propício para a luta de ideias, não deixa porém de ser certo que a actuação das elites, sempre que queira exercer-se contra os interesses da classe dirigente, está sujeita a perigos análogos aos de outros tempos.(...) Mas, se a identificação de classe dirigente e elite cultural nunca se deu nem se dá, para quê o pretender estabelecê-la?
Razão evidente e única – porque a classe dirigente, não tendo que fazer de momento, nem necessitando, dessas
antecipações geniais no domínio da ciência e da cultura (aos seus autores é dada a liberdade de morrer na miséria), precisa no entanto daquilo a que podemos chamar valores científicos e culturais de segundo plano, a fim de adquirir uma base mais sólida de existência e domínio. E como, por outro lado, ela sabe bem que mal vai o seu poderio quando ele é exclusivamente de natureza material, fabrica, para seu uso próprio, um conceito novo de elite, deformador do verdadeiro, e, armada com esse conceito novo e servida por aqueles que se prestam a dar-lhe corpo, pretende aparecer como suporte único do movimento cultural, relegando para o domínio do subversivo, a que é preciso dar caça, tudo aquilo que contrariar os seus cânones.
Ser-se culto não implica ser-se sábio; há sábios que não são homens cultos e homens cultos que não são sábios; mas o que o ser culto implica, é um certo grau de saber(...)
O trabalho de submissão, de lamber de botas, da parte das chamadas camadas intelectuais, tem sido duma perfeição dificilmente excedível. Digamos, para irmos até ao fim, que os mais excelsos nesse mister são frequentemente aqueles que, partidos das camadas ditas inferiores, se guindaram, umas vezes a pulso, outras em acrobacia de palhaço, a posições que deveriam utilizar para defesa dos bens espirituais e que só usam para trair -os seus antigos irmãos no sofrimento.
(...)
o homem culto? É aquele que tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.

Ler nas entrelinhas é sempre bom e entre as linhas da frase com que se despediu, o meu colega deixou muita coisa . Deixo-lhe também nas entrelinhas um abraço:


regressando a BJC com uma última e fundamental reflexão:
"Só figuram de folhas caídas, para uma geração, aquelas gerações anteriores cujo ideal de vida se concentrou egoisticamente em si e que não cuidaram de construir para o futuro, pela resolução em bases largas dos problemas que lhes estavam postos, numa elevada compreensão do seu significado humano. Essa concentração, egoísta tem um nome ,traição, e, se hoje trairmos, será esse o nosso destino - ser arredados com o pé, como se arreda um montão de folhas mortas.E não queiramos que amanhã tenham de praticar para connosco esse gesto, impiedoso mas justiceiro, exactamente o mesmo que hoje nos vemos obrigados a fazer para com aquilo que, do passado, é obstáculo no nosso caminho ".

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