quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Não sei o que tenho em Beja - ou crónica de uma estrangeira


Acordei das Andarilhas atordoada, dividida entre os acalorados argumentos dos opinion makers locais sobre as Palavras Andarilhas e a antevisão do impacto que as medidas anunciadas pelo governo - grupo de malfeitores democraticamente eleitos e que tem o meu pais com refém - terão sobre a minha economia familiar. (sobre isto escreverei assim que conseguir sair da fase dos impropérios que me saltam à boca, cada vez ouço a palavra GOVERNO)

Tem andado aceso o submundo da blogo esfera, ao qual, como perceberão, aderi muito recentemente. O tema de fundo era o carácter bienal do evento, o seu significado para a cidade de Beja e isto em contraponto com outros eventos do burgo – Beja Moda 2010, cantigas na Praça, Beja Wine Night - e vejo-me a pensar se deverei escrever sobre isso no meu primeiro post pós Andarilhas. Se deverei entrar nesta batalha do bem contra o mal, neste Sporting Benfica, neste solteiros contra casados, nesta guerra entre velhos e novos, entre o popular e o populista, nesta discussão entre o sociality e a reality.

Chego à conclusão que sim e tentarei fazê-lo discutindo conceitos pois considero que cada evento que surge num determinado território tem atrás de si um conceito. Falo especificamente das Palavras Andarilhas, mas até poderia falar de um Festival de Bd, de um Animatu, de um Festival do amor (brilhante ideia se não estou em erro por Pedro Ferro, esboçada de forma medíocre na sua última edição) de uma Moda Beja 2010, de umas Cantigas na Praça de uma Beja Wine Night – e abro todo este leque, porque considero que cada um destes eventos personificam conceitos diferentes de cidade.

Devo a mim mesma, este exercício de cidadania e devo-o também à organização onde trabalho e que desde sempre tenho ajudado a pensar, devo-o aos leitores e não leitores da cidade, aos técnicos de todas as áreas com quem tenho tido o privilégio de crescer, à minha equipa e até mesmo, aos vergalhudos que aproveitando a polémica e a sombra confortável do anonimato vão dando uma ou outra alfinetada confirmando que a misogenia está de boa saúde e a natureza humana já teve melhores dias.

Escrever sobre as andarilhas é falar de identidade, de memória, de património, de contemporaneidade, de todas as manifestações da palavra e tudo isto alicerçado num equipamento com um projecto – talvez o único equipamento da cidade que desde a primeira hora teve um projecto. Quando digo que cada evento personifica um conceito de cidade falo da cidade que temos e da cidade que queremos. Ou melhor, a cidade que os Bejenses querem para si, porque eu apesar de amar Beja, serei sempre uma estrangeira.

Usar a palavra como instrumento numa região que nunca teve voz, reforçar a identidade e a memória numa cidade que perdeu a relação com o seu mundo rural e necessita dessa raiz para se entender , valorizar o património – oral - de forma criativa construindo pontes com a contemporaneidade – a literatura , perspectivar a esperança de uma cidade leitora, é trabalhar sobre um conceito cultural gerador de desenvolvimento.

Não tenho nada contra o facto de se querer vender a ideia de Beja como uma espécie de Ibiza do Alentejo, uma espécie de Lux ou de Urban Beach a arrastar-se em gerúndios. Uma espécie de Ovicopos, com menos lama e sem touradas. Nada me move contra esta espécie de glamour, artificialmente marcado pelo ritmo alucinante dos Dj’s, iluminado pelo brilho dos copos e do gelo, onde fabulosos pares de pernas vestindo Augustos – estilista de enorme qualidade e de refinado gosto – marcam o ritmo e o caminho para esta espécie de “nova” urbanidade, que parece ter aterrado na cidade. Apenas estranho este desejo em ser uma espécie de alguma coisa, em criar um Jet Set local alimentado por figuras públicas secundaríssimas, artistas encostados nas prateleiras das televisões, cantores adiados que vêm até Beja animar praças, quando Beja tem os seus eventos originais. Beja tem público para tudo e até o que está formado e formatado por sucessivas exposições aos Fama Shows dos media e pelo livre acesso às revistas cor - de – rosa . Nada me move contra o vinho, cultura que prezo, que considero importante para a região, mas que penso deve ser tratada numa relação custo - benefício mais equilbrada.

Apenas lamento que se faça coincidir uma Beja Moda 2010, ao que sei com imensa participação, com a última noite de umas Palavras Andarilhas, as mesmas que com menos 60% de orçamento deram à cidade maior cobertura mediática que uma Beja Wine Night, as mesmas que diferenciam a cidade, de tudo o que se faz no pais. Apenas lamento que tantos anos depois, ainda não se tenha encontrado fontes de financiamento comunitárias e regionais que possibilitem Andarilhar sem a corda na garganta. Lamento mas não estranho. Pois tantos anos que levo em Beja, já me habituaram a sucessivos tiros nos pés.

Beja, que tem público para tudo, parece não ter capacidade de se sonhar como cidade, de sair dos estereótipos do glamour e do sucesso de plástico e acarinhar, também financeiramente, os projectos que fazem acontecer em Beja o que não acontece em mais lado nenhum.

Há muito tempo que as Andarilhas deixaram de ser uma espécie de qualquer coisa. São um evento irreproduzível, porque quem as pensou tratou de lhe dar esse cunho. São o resultado de um trabalho calibrado ao longo do ano, ao longo de muitos anos de uma pequena organização que não pode esgotar os seus recursos e energias num evento que dura 3 dias - que tem mais de 4 meses de preparação – e descuidar o trabalho do ano. .Acaso quem defende a sua anualidade sabe da dimensão da equipa que as promove? Sabe que no programa do encontro estão idosos que são acompanhados a partir do programa de leitura em meio rural e esse trabalho de recolha, de identificação e de construção de relação exige tempo e tem de ser cuidado? Que as sessões para público familiar ficam lotadas durante estes dias e são participadas pelos pares de pais e filhos que ao longo do ano frequentam os projectos continuados de formação de publico leitor. Alguém percebeu que a vinda de Chullage e Paulo Condessa assenta numa estratégia de captação de publico juvenil, de abertura ao ensino secundário e que a oferta para público escolar é o culminar de um trabalho desenvolvido em parceria com mais de 19 bibliotecas escolares. Acaso perceberam que as Andarilhas fazem a ponte entre linhas de investigação e o mundo da prática e que qualquer destes mundos precisam de renovar-se e que quem as pensa, precisa de tempo para ver, conhecer, estudar de forma a manter a coerência do evento e simultaneamente encontrar novas linhas de trabalho, de forma a trazer experiências diversificadas a todos os andarilhos onde estão mais de 50 mediadores de leitura do concelho e que acedem gratuitamente ao encontro ou a actividades de natureza formativa nele integradas.

Será que alguém percebeu isto? Onde estavam os defensores da anualidade das Palavras Andarilhas quando, neste ano de crise, se cortaram - é público - as verbas na área cultural da cidade? Acaso perceberam que desde Março de 2010, o acervo infantil vive das escassas doações de editoras ou de autores? Acaso perceberam que por questões de natureza financeira se sacrificaram mais de 50% das actividades que as Andarilhas tradicionalmente levavam às crianças e adultos de Meio Rural. Acaso perceberam que o Animatu deixou de realizar-se? Que o Festival de Bd foi feito por obra a graça de dois Espiritos Santos.

Passar as andarilhas para Bienal foi uma questão estratégica e técnica de quem pensa responsavelmente no que faz, de quem sabe o que anda a fazer e é responsável pelo crescimento saudável de um projecto fundamental à cidade, à nossa cidade. A vossa cidade.

Vinte e muitos anos vivendo em Beja e sei que serei sempre uma estrangeira mas, apesar deste amor desavindo estou grata a Beja e devo-lhe estas linhas.
Foi em Beja que aprendi a competir e a lutar, que abandonei dogmas e descobri na solidão a minha voz social. Foi em Beja que fiz as primeiras asneiras das primeiras autonomias e cresci profissionalmente. Foi em Beja que encontrei quem incondicionalmente me ama, que pari e que as minhas filhas tiveram o seu primeiro sangramento. Foi em Beja que cresci profissionalmente e tive as minhas primeiras grandes perdas e é por isso que me atrevo a escrever o que escrevo e a pensar o que penso e criticar o que entendo ser criticado, na cidade e na organização a que pertenço.

Estarei sempre grata a Beja por me permitir viver a experiência intensa e arrebatadora que participar num processo como este . Fazê-lo é uma graça, um privilégio que agradeço a todos os que nestes anos andarilham ao nosso lado: à pequena equipa que desde a primeira hora e todas as vezes, está presente, e aos outros que nestas horas vem ajudar, aos muitos narradores e especialistas de tantas áreas que trazem o melhor que fazem a Beja , aos muitos voluntários, a todos os que delas cuidaram, aos que e as aproveitam para crescer, para aprender, para sonhar e se divertir e agradeço até aos que nunca nos apoiaram ou o fizeram contrafeitos sem alguma vez terem percebido o seu conceito, o seu papel transformador. Todos me dão a incerteza do caminho e nela a Utopia de continuar a fazer das Bibliotecas “ o lugar onde moram as palavras”: a palavra liberdade, a palavra memória, a palavra identidade, a palavra PALAVRA .

Durante os mais de 3 meses de gestação de mais uma edição, a cada sucesso, a cada revés, a cada vitória ou decepção, lembrei-me muitas vezes do Mestre. Ele sabia a cidade que Beja poderia ser, se ousasse!
Agora… que já disse o que me anda há três semanas a doer-me no peito, há 4 meses a encher-me a cabeça, há uns 11 anos a corroer-me a alma, … vou cuidar de mim!