A tia Sol está presente na minha
vida desde sempre e a sua chegada era sempre celebrada. Naquele
tempo a tia Sol tinha um carro divertido e fumava. Lembro-me de ficar presa nos
gestos da tia Sol a apanhar o isqueiro, as unhas pintadas, as mãos com anéis a
segurar o cigarro, no fumo que saía pela boca escurecida.
Vivi na casa da Tia Sol em Silves
aí pelos 10 anos e mais tarde , asilava umas dormidas no Festival da Paz, no
festival da Cerveja, ou para ficar em Portimão à noite. As Casas da Tia Sol sempre foram um mistério. A de Silves, com um corredor que a percorria de lado a lado, uma saleta onde eu dormi tantas vezes, uma luz que tenho gravada nas retinas, a
de Portimão com aquele caos absolutamente organizado, povoado de recantos de
memórias. A tia Sol sabia falar grosso ou dar colo. Fazia malhas como uma doida
e nunca chorava nos funerais- não sei como ela conseguia, mas começo a
compreender.
Foi minha professora. Era tesa e ensinava bem. Tinha um olhar
sobre o que deve ser escola e a relação entre professor aluno que a fazem, ainda hoje pertencer à elite de professores
que guardo na memória. Tinha um amor profundo pela minha mãe e partilharam uma vida profissional e pessoal.
Nos últimos anos, quase todos os
domingos, chegava com um folar delicioso e um ramo de flores para a minha mãe . Vinha emprestar ouvidos e partilhar dores.vinha conversar. Quando
estavam as duas e o meu pai sossegava, sentavam-se falavam de cor, almoçando e aviando uma litrada de tinto da Vidigueira, outras vezes uma "Champanhoca". A tia Sol e a minha mãe sempre foram dois
"bons" copos. Nunca lhe perguntei se era feliz,
mas acho que sim, apesar das suas silenciosas dores. . O riso e o corpo andavam a
dar sinais . Nos últimos meses, eram mais raras as gargalhas inconfundíveis da
tia Sol. A vontade de viver expressava-se na forma solidária como se colocava
ao serviço das causas em que acreditava. Era mandona! Quando coincidíamos no
dia e nos encontrava-mos em Lagos conversámos: contava dos seus, escutava dos nossos, faziam-se as grandes
conversas cúmplices, com ela a lavar a loiça na cozinha- o cigarro acesso no
cinzeiro- e a camisa toda molhada
encharcada. Lavar a loiça era uma das funções da tia Sol. Nunca foi visita.
Foi a primeira
mulher da casa a mandar um homem da casa levar na bilha! História célebre que
se contará sempre que se fala da tia Sol.
Eram célebres as "empenas de
crista" que havia entre a tia Sol e o meu pai nos almoços de domingo. O meu pai sempre foi um homem de hábitos . Bons e maus . Sentava-se à mesa depois de o chamarem 400 vezes - o que irritava toda em gente em geral e a tia Sol em particular - e depois de se instalar, ia pedindo de
forma avulsa os ingredientes, os objectos que lhe faziam falta. era sempre o mesmo. ao almoço e ao jantar : agora mais um copo, depois
o sal, o limão , agora o galheteiro e um
prato para a saladinha , logo depois o picante, a faca que estava manchada, a
carne que entretanto esfriou, o copo que tinha uma dedada – e enquanto o pai na
cabeceira dizia ou por vezes gritava para a Cozinha : Oh Maria Joséééé! ,!oh Cristinaaa!, Oh Riiiiita! Oh Biiiiia !, Oh Caroliiiiiina!
– a pequenada e o mulherio fazia de cada refeição uma permanente cadeia de montagem ao serviço destes santos hábitos. Aí pelo terceiro pedido ,a tia Sol começava a encher…
escutavam-se pequenas picardias, ao longo da refeição o tom ia aumentando e quando o meu pai, depois de mandar aquecer a carne duas vezes, rematava
com a useira frase : - Está bom p’ra dar ó pórque! ( deve ler-se à
algarvia ) – aí … era o fim do mundo!
Aquela frase tinha o dom de
acender a veia revolucionária da tia Sol: - Oh ! Eugénio Porra! Francamente… pá!
Que conversa de mer… . Então se levantasses o c…. e fosses buscar o que
precisas à cozinha ?! Oh Pá ! Pede tudo de um vez pá ! - ficava destemperada e logo ela que falava um tão bom português.O meu pai provocava : - Oh Sol não te irrites , que ficas feia! - talvez não fossem exatamente estas as palavras , mas a rotina era mais ou menos esta, não havia surpresas!
Até ao dia em que o Fernando ousou
imitar o Sogro e teceu um comentário gozão e provocador, ligeiramente
depreciativo em relação a um almoço, em relação a "boa" embocadura das senhoras da casa (
leia-se a tia Sol e a Minha Mãe ) , um “ Pudim de espargos “ , não sei precisar:
- Zézinha, na qualidade de teu
genro, lamento que tenha vindo a notar alguma perca de diversidade no repasto e
até de alguma qualidade no atendimento, onde é que já se viu não colocarem as bebidas no frio . E a falta do salmonetinho? ... Já se comeu melhor nesta casa! . terá sido o final do comentário , imagino ... Não recordo em detalhe a natureza do comentário mas sei que ele acendeu a veia de
revolucionária da tia Sol. Tenho a certeza que escutei a célebre frase : - Oh Pá ! Fernando, vai levar na bilha! – O Fernando não foi. Mas nunca mais se recompôs!
Este fim de semana não escutámos a gargalhada com o ligeiro ronquinho a
terminar , aquele que fazia quando dobrava o riso , faltaram as flores. mas ficou a história. Esta, pequena, e muitas outras todas as que contamos para chamar ao presente aqueles que tendo partido, estarão sempre e incondicionalmente
presentes nas nossas vidas?
Um Beijo Grande !
Um Beijo Grande !