domingo, 11 de maio de 2014

Falar de Abril em Maio


“ Ser solidário assim para além da vida /Por dentro da distância percorrida / Fazer de cada perda uma raiz /e improvavelmente ser feliz(…)”

 Existirão muitas maneiras de falar de Abril. Tantas como as palavras que o contam. Eu escolho, por agora, as palavras dos poetas. Ninguém melhor do que os poetas para falar dessa “ (…) madrugada tão esperada, esse dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio e  livres habitamos a substância do tempo”- um poema maior de Sophia de Mello Breyner Andresen que desta forma evocou a maior conquista de Abril: a liberdade.

Ao olhar para a distância percorrida, as nossas primeiras palavras são de celebração e homenagem aos homens e mulheres que antes de Abril estiveram onde era mais difícil estar e lutaram e lutam , com a força das suas convicções, pela construção de um País mais justo e mais livre, mais solidário. Foram muitos os que, de muitos quadrantes, de muitos credos, de muitas ideologias, fizeram a história desta revolução. Uma história contada a muitas mãos , 40 anos de história onde todos nós fomos e somos co-autores. Talvez por isso e cada vez mais Abril seja uma data sem donos.

Não poderia senão trazer-vos as palavras dos poetas para falar de Abril.Sou uma mulher que tem uma convicção profunda na importância das palavras, da leitura e da cultura como um instrumento poderoso na transformação dos sujeitos. Quem não tem palavras para expressar o que pensa, o que sabe , o que diz, está condicionado nas suas escolhas, limitado no exercício dos seus direitos de cidadania. E para muitos, ainda hoje, Abril tarda em cumprir-se, pleno.

Habito uma casa de livros. nela está guardada a História do Mundo e do Pensamento e esta conta-nos como os livros e a liberdade sempre se relacionaram, por isso “(…) os livros se queimam, se censuram em épocas de ditadura – dura de ouvido, dura de cabeça, dura de duração e se promove a educação e a literacia em tempos de dita – livre, tempos de livro-pensadores” ( Maria Teresa Meireles).

Regresso às palavras de José Mário Branco  e a um seu texto de 1979 – tão actual que parece ter sido escrito hoje – um texto que nos desassossega e interpela:

 (…)podes ir para a cama descansado que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, Podes estar descansado que estão todos a tratar de ti , tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas. A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias, ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou! (…) Entretém-te meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti, se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão, descansa que eles tratam disso, Descansa, não penses em mais nada, que até neste país de pelintras se acha normal haver mãos desempregadas.

Dou voz às palavras do poeta porque temo
que as experiências laboratoriais que são feitas em economias como a nossa, apenas tenham como resultado alimentar um ciclo  infernal  de austeridade de empobrecimento, de controle social, e de perda de autonomia e soberania e que a estas de associe a perda direitos fundamentais: Educação, Saúde, Segurança Social, Cultura – consagrados naquela que é a carta dos direitos de cada cidadão português: a sua constituição.

temo as consequências das repetidas instrumentalizações do estado ao serviço dos grandes interesses privados, às vezes partidários, às vezes até dos pequenos e mesquinhos interesses pessoais.

porque só nas palavras dos poetas encontro o abraço que me abriga do autoritarismo do poder, da inflexibilidade do eu quero, posso e mando, da incapacidade de escutar, de infletir rumos, hipotecando projectos estruturantes importantes para o desenvolvimento dos territórios, para a qualidade de vida das populações.

Trago hoje a esta sala a palavra do poetas, porque nelas mora esse Abril primeiro, inocente e limpo, que nos convoca a resistir e que nos anima a permanentemente a reinventar : Ai, Zé Mário (…) E se inventássemos o mar de volta, e se inventássemos partir, para regressar. Partir e aí nessa viagem ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partir para ganhar, partir para acordar, abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar, terra, mar, mãe... Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto, lembrar nota a nota o canto das sereias, lembrar o depois do adeus e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal, lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição, partir aqui com a ciência toda do passado, partir, aqui, para ficar... Assim te quero cantar, mar antigo a que regresso. Neste cais está arrimado o barco sonho em que voltei. Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grândola Vila Morena. Diz lá, valeu a pena a travessia?  

Acho que todos diremos que sim, que valeu a pena, que foi longa a jornada e mais longa ainda a que precisamos empreender para chegar ao lugar onde se joga a possibilidade de nos podermos construir como homens e mulheres inteiros. Obrigada.

Cristina Taquelim/representante do Movimento de cidadãos por Beja com Todos /25 de Abril / 2014.

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